Maria Inês - 15.04.2022

UM MESTRE SHANENAWA

Prefácio do livro Shuayne, resultante da pesquisa do Mestrado de Cristiane de Bortoli, no PPGLI


O mestre Shuayne Shanenawa A pesquisa de Cristiane de Bortoli sobre os cantos Shanenawa abre um caminho muito importante no conhecimento da "Escola Indígena”. Com esse termo o Laboratório de Interculturalidade (LaBinter) do PPGLLI/ UFAC designa o espaço-tempo de um ensino que transcenderia as salas de aula das aldeias e se estenderia pela educação brasileira, num movimento libertador sonhado desde os tempos da Colônia. Seria uma escola baseada nas vozes de mestres indígenas. Como se institui um mestre em tal escola? Neste livro, temos algumas pistas, que nos levam ao que seria uma escola indígena Shanenawa, por exemplo. Não só através dos cantos, mas das histórias e da ciência em geral, Cristiane vislumbrou um mestre Shanenawa, o Shuayne, e abriu caminhos acadêmicos para que o ensino deste ancião se alastrasse. No Acre, a poesia oral traz a floresta para o ambiente universitário, mas sem romper com a escrita: a cópia, a tradução, a leitura são práticas que necessariamente convocam o corpo e a paisagem. Trazer o cantos Shanenawa e a voz de Shuayne para o universo literário, propiciando que os leitores entrem no ensino de Shuayne, implica levá-los a se conectar no mito da Arara Azul (shanenawa), ouvir o seu canto. Copiando Shuayne, o texto se encarregará de levar seus leitores ao canto shanenawa. Assim podemos dizer da prática que se institui no LaBinter, a da tradução: copiar, copiar, até que a paisagem se transforme em canto - na pura língua. Implica, portanto, em ver/ouvir a performance dos mestres, apreciar suas artes. Conhecer a maestria de um intérprete, receber sua obra vocal, é a tarefa que este livro de Cristiane realiza, entregando ao público a obra de Shuayne. Esta obra consiste em performances verbivocovisuais (que se poderão visualizar também nos registros audiovisuais que acompanham o livro) e em suas gramáticas percebidas na pesquisa, enfim, o livro traz uma teoria secretada no processo de escuta a que Cristiane se dispôs.
Para ser o intérprete competente da “cultura" shanenawa, Shuayne precisou compreender bem seu meio ambiente, saber das condicionantes para se praticar um canto: onde, quando, para que, a quem e o que é permitido. Os cantos de "Xikari" ou de "Rezo" são demonstrações de uma tipologia textual definida na prática e teorizada pelo mestre nas longas entrevistas durante a pesquisa de Cristiane. E a maestria se firma no conhecimento transmitido, a ponto do canto de Suayne estar associado a uma verdadeira “revolução" shanenawa (retorno às fontes), operada por sua família na aldeia Shane Kaya. Essas transformações emanadas pela voz/espírito shanenawa de Shuayne são também colocadas no foco deste livro. Se a autoria não fosse uma questão do Direito, e da Literatura, mas tão somente uma experiência da letra, os sujeitos implicados numa obra escrita seriam sempre apagados pelo texto. E esta impessoalidade teria a força do risco - a marca, o estilo. No caso deste livro sobre os cantos do povo Shanenawa, cujo intérprete mais respeitado é o Shuayne, o que Cristiane busca é ajudar a desenhar sua marca, transformar sua voz em ensino escolar que não rompa com as tradições familiares. Essa educação escolar indígena é importante para uma região onde a oralidade e a escrita são lados do mesmo caleidoscópio : "Eis por que podemos pensar que uma verdadeira integração das mídias só se produzirá ao cabo de um esforço crítico amplamente fundado na cultura tradicional, transmitida pela escritura e mantida de modo privilegiado no meio urbano. Se existe crise ou mal-estar, a solução para ambos não se encontra na volta a nenhum estado anterior e puro, mas no reconhecimento e na superação de tudo o que até então nos atingiu. As vozes que estão mais presentes e que ressoarão amanhã são as que terão permeado toda a espessura da escritura" (ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral, 1997, p. 31) A valorização dos mestres nessa escola é a mesma que se vê nas aldeias. A maestria é decorrência do caminho aberto pela performance, pela experiência que resta nas marcas, no movimento, na evolução daquele que se propõe a desenvolver uma arte, seja ela qual for (desenho, canto, narração, medicina, tecelagem, caça...). Os professores, os pesquisadores acadêmicos, os agentes do Estado moderno, que se firma na escrita sobre papel (e agora na web), cumprirão tarefa do escriba, num utópico retorno à "academia" (como aquela fundada na Grécia por Platão, antes de Cristo, num jardim dedicado a Atena), em que o mestre pensava em movimento, e o ensino se configurava em ato.

UM MESTRE SHANENAWA

Maria Inês
15.04.2022
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O mestre Shuayne Shanenawa

A pesquisa de Cristiane de Bortoli sobre os cantos Shanenawa abre um caminho muito importante no conhecimento da "Escola Indígena”. Com esse termo o Laboratório de Interculturalidade (LaBinter) do PPGLLI/ UFAC designa o espaço-tempo de um ensino que transcenderia as salas de aula das aldeias e se estenderia pela educação brasileira, num movimento libertador sonhado desde os tempos da Colônia. Seria uma escola baseada nas vozes de mestres indígenas.

Como se institui um mestre em tal escola? Neste livro, temos algumas pistas, que nos levam ao que seria uma escola indígena Shanenawa, por exemplo. Não só através dos cantos, mas das histórias e da ciência em geral, Cristiane vislumbrou um mestre Shanenawa, o Shuayne, e abriu caminhos acadêmicos para que o ensino deste ancião se alastrasse.

No Acre, a poesia oral traz a floresta para o ambiente universitário, mas sem romper com a escrita: a cópia, a tradução, a leitura são práticas

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que necessariamente convocam o corpo e a paisagem. Trazer o cantos Shanenawa e a voz de Shuayne para o universo literário, propiciando que os leitores entrem no ensino de Shuayne, implica levá-los a se conectar no mito da Arara Azul (shanenawa), ouvir o seu canto. Copiando Shuayne, o texto se encarregará de levar seus leitores ao canto shanenawa. Assim podemos dizer da prática que se institui no LaBinter, a da tradução: copiar, copiar, até que a paisagem se transforme em canto - na pura língua. Implica, portanto, em ver/ouvir a performance dos mestres, apreciar suas artes. Conhecer a maestria de um intérprete, receber sua obra vocal, é a tarefa que este livro de Cristiane realiza, entregando ao público a obra de Shuayne.

Esta obra consiste em performances verbivocovisuais (que se poderão visualizar também nos registros audiovisuais que acompanham o livro) e em suas gramáticas percebidas na pesquisa, enfim, o livro traz uma teoria secretada no processo de escuta a que

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Cristiane se dispôs.
Para ser o intérprete competente da “cultura" shanenawa, Shuayne precisou compreender bem seu meio ambiente, saber das condicionantes para se praticar um canto: onde, quando, para que, a quem e o que é permitido. Os cantos de "Xikari" ou de "Rezo" são demonstrações de uma tipologia textual definida na prática e teorizada pelo mestre nas longas entrevistas durante a pesquisa de Cristiane. E a maestria se firma no conhecimento transmitido, a ponto do canto de Suayne estar associado a uma verdadeira “revolução" shanenawa (retorno às fontes), operada por sua família na aldeia Shane Kaya. Essas transformações emanadas pela voz/espírito shanenawa de Shuayne são também colocadas no foco deste livro.

Se a autoria não fosse uma questão do Direito, e da Literatura, mas tão somente uma experiência da letra, os sujeitos implicados numa obra escrita seriam sempre apagados pelo texto. E esta impessoalidade teria a força do risco - a marca, o estilo.

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No caso deste livro sobre os cantos do povo

Shanenawa, cujo intérprete mais respeitado é o Shuayne, o que Cristiane busca é ajudar a desenhar sua marca, transformar sua voz em ensino escolar que não rompa com as tradições familiares. Essa educação escolar indígena é importante para uma região onde a oralidade e a escrita são lados do mesmo caleidoscópio :

"Eis por que podemos pensar que uma verdadeira integração das mídias só se produzirá ao cabo de um esforço crítico amplamente fundado na cultura tradicional, transmitida pela escritura e mantida de modo privilegiado no meio urbano. Se existe crise ou mal-estar, a solução para ambos não se encontra na volta a nenhum estado anterior e puro, mas no reconhecimento e na superação de tudo o que até então nos atingiu. As vozes que estão mais presentes e que ressoarão amanhã são as que terão permeado toda a espessura da escritura" (ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral, 1997, p. 31)

A valorização

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dos mestres nessa escola é a mesma que se vê nas aldeias. A maestria é decorrência do caminho aberto pela performance, pela experiência que resta nas marcas, no movimento, na evolução daquele que se propõe a desenvolver uma arte, seja ela qual for (desenho, canto, narração, medicina, tecelagem, caça...). Os professores, os pesquisadores acadêmicos, os agentes do Estado moderno, que se firma na escrita sobre papel (e agora na web), cumprirão tarefa do escriba, num utópico retorno à "academia" (como aquela fundada na Grécia por Platão, antes de Cristo, num jardim dedicado a Atena), em que o mestre pensava em movimento, e o ensino se configurava em ato.